domingo, 24 de setembro de 2006

O Amor

"José Imaginário Monteiro tem 79 anos e há 16 que cuida da mulher, Maria Augusta, doente de Alzheimer. Há 16 anos que não sai de casa, a não ser para ir, de passo ligeiro e coração apertado, à mercearia mais próxima, aproveitando a presença da empregada. E é tudo. Nunca mais foi a parte nenhuma. Nem a casa dos filhos, nem às festas dos netos, nem aos Natais da família. Nunca mais foi à campa dos pais, nunca mais viu os amigos de Santarém. Mas está convicto da sua missão: "Tenho a certeza de que, se a tivéssemos metido num lar, já me tinha morrido."

A dedicação de Imaginário Monteiro é rara. Há 16 anos que lhe mede a temperatura três vezes ao dia, há 16 anos que anota tudo num mapa: temperatura, nível de glicemia, horas a que urina, dias a que defeca. Folhas e folhas de valores que o sossegam sobre a saúde da sua Augusta. Folhas e folhas de números que lhe justificam a existência: "Ela não se queixa, não é? E ou bem que se faz as coisas como deve ser, ou então não se faz." E Imaginário Monteiro faz. Só faz. É ela a sua vida. Mais nada.

Todos os dias, a rotina repete-se. Acorda às seis da manhã para lhe dar um leite com chocolate ou um iogurte. A meio da manhã, uma fruta passada. As refeições obedecem a um ritmo certo, porque Maria Augusta, como muitos doentes de Alzheimer, sofre de diabetes. Mas também de Parkinson e epilepsia. Na lista de afazeres, além das medições, da medicação e das mudas de fraldas, Imaginário Monteiro nunca esquece o creme hidratante, única forma de manter a pele da doente sem uma escara. Assim como não deixa de lhe ligar a televisão: "Ligo sempre, para ela se distrair. Não sei se distrai ou não. Nem sei se ela a vê. Assim como não sei se me conhece. O médico diz que não. A gente sabe lá. Seja como for, falo sempre com ela."
in Diário de Noticias 24/09/2006

É assim que eu imagino um grande Amor. Espécie em vias de extinção nos dias que correm.
E vocês o que dizem?

2 comentários:

Anónimo disse...

Eu o que digo...?

Que o Amor já não é o Amor... este Amor, porque as margens de tolerância pelo menos da minha geração ( 38 anos ) ou das pessoas entre as quais circulo ( para não ser injustamente generalista ), são reduzidas. Entendemos de um lado que a vida é curta para nós e restringímos o raio de circunferência do mundo, ao raio de circunferência do nosso corpo... por outro, alguns de nós ainda sonham com a vida só numa recta sempre paralela a alguém... Já amei ao ponto de segurar uma mão que contra a minha fizesse força ou que se deixasse descançar no berço da minha. E ainda não perdi a esperança de que alguém empurre a minha cadeira de rodas ou me deixe empurrar a sua...

Rui S.

sofia disse...

o que se diz?
Tudo parece pequeno demais perto deste AMOR. É uma entrega sem pedir nada, absolutamente nada em troca, talvez inconscientemente apenas peça à sua Augusta que continue a sobreviver para que ele possa continuar a dedicar-se a ela. É o Amor na sua forma mais pura.